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quarta-feira, 6 de setembro de 2017

Dark Side of The Moon (Pink Floyd, 1973)

6. Um álbum que mudou a forma que você pensa sobre música

Lembro de certa vez ter lido em algum lugar que, de todas as formas de arte, a música é aquela mais universal, mais acessível e mais identificável. E que também é a mais inexplicável, ou algo do tipo. Com certeza (?), está entre as mais antigas e deve ser por esse motivo que é considerada todas essas coisas que acabo de mencionar. Não sei até que ponto concordo com essa visão em termos mais gerais, mas quando falo exclusivamente de mim - e, convenhamos, este espaço aqui é todinho meu -, digo que é 100% verdadeira. Música é o tipo de coisa sem a qual não posso viver. Sério. Consigo me imaginar sem poder assistir filmes e espetáculos de teatro, sem poder visitar museus e exposições e até sem poder ler; mas jamais, sob hipótese alguma, consigo me imaginar vivendo em um mundo onde eu não tenha a possibilidade de escutar música.

Não sei se essa é uma noção que carrego comigo desde que nasci ou se foi algo que surgiu conforme fui me desenvolvendo como pessoinha. Talvez seja porque tive aulas de música na escola, ou talvez meu destino tenha sido traçado no momento em que meus pais resolveram me batizar com nome de canção. É possível que seja um pouco dos dois. Ou não. Tem coisas que são meio inexplicáveis mesmo. O que eu sei com certeza é que só me dei conta de que funciono desse jeito quando estava na adolescência, que também foi quando iniciei a minha formação como gente-que-escuta-música. Foi nessa fase que comecei a expandir meus horizontes, indo além daquilo que escutava apenas por influência de familiares e pessoas próximas e que nem sempre tinha muito a ver com meu interesse pessoal. Não que eu questionasse aquilo que estava escutando; para ser sincera, nem prestava muita atenção. Até que, de repente, comecei a prestar. Jamais saberei como aconteceu.

Era a primeira década dos anos 2000, a internet 2.0 engatinhava e a minha principal fonte de informação era a MTV. Só Deus sabe quantas horas da minha vida foram investidas na programação da emissora, mas eu estimo que tenham sido muitas. Até hoje, quando me lembro de alguma informação aleatória sobre algum vocalista obscuro de alguma banda igualmente obscura dos anos 80, sei que foi lá que aprendi. Os VJs, detentores de grande sabedoria, eram meus gurus e sob sua orientação, comecei minha jornada rumo à iluminação. Foram muitas degustações auditivas, que resultaram em experiências positivas, desagradáveis, passageiras, marcantes ou definitivas. Era tudo muito rocambolesco também, arquivos .mp3 completamente desconexos reunidos na mesma pastinha do player esperando o shuffle fazer a mágica acontecer.

Foi nessa época que escutei o nome Pink Floyd pela primeira vez e gostaria de dizer que tenho alguma história interessante a respeito, mas não. A real é que, assim como muitas das informações e estímulos bombardeados para o meu impressionável cérebro adolescente, o Pink Floyd caiu no limbo dedicado às informações inúteis que permanecem adormecidas até que um momento oportuno se apresente. No caso, ficou lá até 2007, quando graças ao finado e saudoso Orkut, descobri que uma das minhas músicas preferidas da trilha sonora de Os Infiltrados se chama Comfortably Numb (The Wall, 1979), que foi rapidamente baixada via eMule e exaustivamente escutada por aquela minha versão que não entendia muito bem o que raios era um álbum conceitual e nem se esforçou para pesquisar. A lerdeza era tanta que não me dei conta de que a versão que toca no filme não é a mesma que eu escutava e amava sem perceber, já que achava tudo muito estranho. Porque é assim que ocorre a conexão com o Pink Floyd: a gente não percebe que está vivendo um relacionamento, pelo menos não no começo. É tudo tão esquisito, sombrio e angustiante, que a única reação possível é o estranhamento. Inocente, mal sabia eu que ao encontrar um paradoxal conforto em uma música perturbadoramente chamada Comfortably Numb, estava tendo um vislumbre do que seria a vida adulta e, claro, o significado sagrado do Pink Floyd para mim. Não que eu possa me culpar pela ingenuidade de quem ainda nem tinha começado a viver. Não que eu possa condenar alguém por encontrar algum tipo de consolo na voz suave e no solo de guitarra transcendental do David Gilmour. Como poderia?

Foi em algum momento do ano de 2008 que decidi, sem muita explicação, começar uma pesquisa sobre o Pink Floyd, que até então, era apenas uma banda one hit wonder do meu MP4 Player retangular. E por meio daquela que eu considerava a fonte mais confiável da world wide web, Wikipedia, comecei a me informar e a tentar armazenar conhecimentos sobre a banda no meu cérebro. Não demorei para perceber que quando falamos de Pink Floyd, não dá muito para sair memorizando nomes de singles e vocalistas. Quer dizer, até dá, os nomes e números estão aí para serem consultados. É só que essa lógica de se deixar guiar por eles não é muito justa com o que, de fato, é o Pink Floyd. Estamos falando quase que de uma entidade. Lembro que, de tudo o que li sobre a banda durante aqueles primeiros contatos, o que mais me impressionou e fascinou foi tragédia de Syd Barrett, o gênio criativo por trás da fundação da banda, que definhou enquanto perdia a razão até que, de fato, sucumbiu à loucura. Já tinha lido sobre músicos que morriam inesperadamente em acidentes ou que tiravam suas próprias vidas, com ou sem intenção. Mas jamais havia passado pela minha cabeça a noção de se perder dentro de si à ponto de deixar de existir, ainda que, tecnicamente, ainda se exista. Syd Barret começou a declinar em 1968, mas só partiu em 2006. Sinto arrepios só de imaginar como devem ter sido os 38 anos no meio disso.

Com esse estranho fascínio, porém com um pouco de receio e - por que não? - medo de escutar as palavras desta mente atormentada, resolvi que só queria e precisava conhecer o Pink Floyd de Roger Waters, cujo primeiro e, talvez, principal expoente (são questões) é o icônico álbum com um prisma na capa: Dark Side of the Moon. Lançado em 1º de março de 1973, além de ser claramente pisciano, o álbum explodiu a minha cabeça e, não só mudou completamente a maneira como eu pensava sobre música, como transformou a minha vida, a maneira como eu enxergo a humanidade e o mundo. Sem que eu percebesse, estava sendo impactada por aquele que considero o melhor álbum já feito e, indiscutivelmente, o meu disco preferido de todos os tempos.

Já deixo claro que não irei me aprofundar a respeito dos aspectos técnicos do álbum e muito menos me propor a escrever algum tipo de crítica, análise, etc. Para tudo existe um limite e um dos meus começa quando o assunto é a discografia do Pink Floyd. Ou boa parte dela, pelo menos. Sem sombra de dúvidas, The Dark Side of the Moon entra na minha categoria de coisas intocáveis e sagradas. Para todos os efeitos, direi que ele foi revolucionário e figura na lista dos 1001 discos para ouvir antes de morrer. Altamente recomendável. Para mais informações, joga no Google.

O que quero, por meio deste textão é tentar explicar o porquê de eu considerar este álbum algo tão primoroso, que me toca profundamente e com o qual me identifico. Também quero atender à proposta original do post e explicar a forma como Dark Side of the Moon mudou a minha maneira de pensar sobre música. Vou conseguir? Não sei, vou tentar.

Creio não estar equivocada ao dizer que 99% das pessoas, ao escutar o Dark Side of the Moon pela primeira vez, ficam com cara de pastel e sem entender muito bem o porquê do hype todo. Eu, com certeza, fiz isso e jamais me esquecerei da reação de uma amiga que tinha na época que, depois de atender aos meus pedidos para que escutasse essa obra-prima, olhou bem na minha cara e mandou um sonoro EU ODIEI O DARK SIDE OF THE MOON! Oh, to be young and innocent! Não que eu a possa julgar muito. Mesmo não sendo o tipo de pessoa que sai por aí odiando as coisas, minhas primeiras reações após escutar o disco passam longe da adoração, do amor incondicional, da profunda identificação e da transcendência. A princípio, aquelas músicas não passavam de ruídos aleatórios e pirações com efeitos eletrônicos; o tipo de coisa que só poderia ser feita por gente sob o efeito de substâncias em uma época em que fazer esse tipo de coisa te dava a garantia de ser visto como descolado. Não vou mentir, é possível que eu tenha achado o Pink Floyd e seus fãs um tanto pedantes. Quer dizer, como assim vocês consideram o som de relógios disparando alarmes e caixas registradoras como música e chamam isso de arte? Sem mencionar a mulher histérica e a risada perturbadora que me causou calafrios quando escutei Brain Damage pela primeira vez em um quarto escuro, alguns instantes antes de dormir. Nada, absolutamente nada, no álbum fazia sentido.

Porém, ao contrário do que aquela voz no fundo da minha cabeça me dizia, não consegui sentir algo de negativo em relação ao Dark Side of the Moon. Ainda que incapaz de compreender o que raios se passava pela mente de Roger, David, Nick e Rick quando resolveram conceber um projeto tão peculiar, algo ali me atingiu, me intrigou e, louca que sou, não consegui parar de escutar. Criei um ritual quase diário de escutar o álbum, sempre à noite ou em algum momento em que sabia que estaria sozinha e não seria interrompida. Ninguém me disse que era assim que se deveria proceder ao escutar Pink Floyd, contudo, estava óbvio que era assim que as coisas deveriam ser feitas. É um daqueles casos em que a gente simplesmente sabe. Durante um ano, o estranhamento gerado pela banda se misturou com aquilo que soava mais amigável aos meus ouvidos e, de alguma forma, fui encontrando algum ponto de equilíbrio musical, mesmo que ainda me fosse impossível entender exatamente sobre o que eram aquelas músicas. Vejam bem, eu já sabia falar inglês e entendia as palavras cantadas; o problema era compreender a mensagem, o real significado. Se é que podemos atribuir um único significado à inigualável trabalho.

Falar sobre Dark Side of the Moon é um troço complicado para mim. É aquela velha história de encontrar dificuldade para colocar em palavras os sentimentos que surgem a partir de algo que nos é tão caro e próximo. É difícil de explicar, as frases não fazem sentido para além da minha cabeça e, sinceramente, nem sei se deveriam. Existem coisas que estão aí para que sejam sentidas e, muitas vezes, não precisam vir acompanhadas de alguma explicação verborrágica. E talvez seja por isso que gosto tanto do álbum, porque ao mesmo tempo em que ele pode soar bastante esquisito e confuso, também faz todo o sentido do mundo. É um álbum complexo e, por mais que eu não goste muito de utilizar esta expressão, é a única que me ocorre no momento. Contudo, quando digo que é complexo, não digo que é inacessível, muito pelo contrário. Penso que se existe um trabalho que fala tão diretamente com a essência da mente humana - principalmente nos tempos em que vivemos - , este trabalho é Dark Side of the Moon. Por isso que o defino como complexo, nós somos complexos também. E tentar entender o álbum é, ao mesmo tempo, tentar nos compreender. E, francamente, essa é uma tarefa difícil pra caramba.

Em seu ensaio Vivendo Pink (publicado na coletânea Pink Floyd e a filosofia, organizada por George A. Reisch), Steven Gimbel discorre à respeito do impacto do Pink Floyd na vida de quem o escuta e de como sua música é carregada de existencialismo. Ao cunhar a expressão estar pink para descrever um estado de espírito que atingimos no mundo pós-moderno, ele também consegue chegar perto de alguma definição ou explicação para os efeitos do Pink Floyd e do porquê de tantas pessoas se identificarem com a banda.
(...) Estar pink não é exatamente o mesmo que estar deprimido ou chateado. Essas emoções costumam ser relacionadas a acontecimentos ou circunstâncias particulares em sua vida. Pink é mais um sentido vago de mal-estar inconsolável, um sentimento de que alguma coisa na estrutura está rompida, não de algo localizado que pode ser consertado, mas de algo mais profundo e difuso em toda a sociedade. É um sentimento de impotência, de que nem mesmo existe uma razão para nos sentirmos ultrajados, já que qualquer coisa que você fizesse, como diz o velho ditado iídiche, seria como urinar no oceano, ou seja, de nada valeria. It can't be helped but there's a lot of it about. Não estamos falando de hanging on in quiet desperation, mas uma reflexão intelectual acerca desse desespero, desejando sem esperança que houvesse algo que pudesse ser feito, sabendo o tempo todo que o problema é endêmico à condição humana.
Optei por colocar este trecho do texto de Gimbel aqui porque acho que ele fez um trabalho louvável e conseguiu, na medida do possível, colocar em palavras o que é sentir o Pink Floyd, de uma forma geral. Todos os trabalhos da banda trazem esse quê de rompimento de estrutura, tanto no sentido mais prático - uso de diferentes técnicas e tecnologias para a gravação de álbuns inovadores -, quanto naquilo que é mais subjetivo, resultando na tal da identificação. Tenho para mim que todos nós, durante a transição para a vida adulta, passamos pelo momento do cair do véu, da abertura das cortinas, da quebra da quarta parede, da saída da caverna, da libertação da matrix. Chame como quiser. É aquele momento quando, pela primeira vez, encaramos a realidade nua e crua, com tudo o que há de mais podre e assustador. Não há exatamente uma idade certa para o processo iniciar e tudo varia de pessoa para pessoa. No meu caso, começou aos 18 anos e acho uma tremenda coincidência que tenha sido justamente naquela época que Dark Side of the Moon aconteceu na minha vida.

Correndo o risco de parecer forçar a barra, peço a licença para traçar um paralelo com algumas ideias que povoam este meu cérebro mirabolante. Uma das coisas que mais me incomodam, apesar de fazer sentido, é que, ao crescer, a gente começa a fingir. De repente, nos tornamos grandes atores, capazes de desbancar qualquer vencedor do Oscar ao entregar excelentes interpretações no Grande Espetáculo da Vida. Acho fascinante como jamais decepcionamos ao escondemos o  nosso verdadeiro eu em prol da felicidade plástica (nossa e alheia) e da estética de um feed harmonizado. Nossos mundos desmoronam, nossos sonhos morrem e a gente vira um bolinho assado em linha de produção belamente decorado com glacê para agradar aos olhares famintos que observam a vitrine. Pode até ser que a massa não esteja boa, mas a aparência é fabulosa, digna de Cake Boss. Não importa se você vai passar mal depois de comer, o importante é manter o simulacro e garantir aquela foto bonita para postar no Instagram. Para além das metáforas culinárias, o que este modus operandi realmente revela é aquilo que sempre pareceu imperar na existência humana: a necessidade de estar no topo da cadeia alimentar. Ou de pelo menos parecer estar no topo da cadeia alimentar. É absurdo o peso que damos à aparência.

Tenho certeza de que se eu me concentrar mais, consigo puxar alguma linha de pensamento que vai terminar com alguma relação entre robôs, vida moderna e capitalismo; contudo, irei poupar à todos nós porque ninguém aqui é obrigado. Seja lá o que eu estava tentando dizer, o ponto de chegada era o fato de que quando a gente cresce, nos adaptamos à um sistema de máscaras que, além de garantir para o universo que somos muito felizes, também oculta parte de quem somos, normalmente aquilo que pode ser visto como escuso e, muitas vezes, as características primordiais que fazem do ser humano o que ele é. A gente é muito podre e sabe disso. E se ilude dizendo que não, não somos. Mas a gente é sim. E é a essa conclusão que eu sempre chego quando termino de escutar Dark Side of the Moon. Ao mesmo tempo em que sinto um conforto perturbador por me sentir representada de alguma forma, também me sinto péssima pela identificação e pelo reconhecimento de que não só estou no mesmo barco que uns músicos muito loucos dos anos 1970, mas também da humanidade de uma forma geral. Dá até pra dizer que foi ali, aos 18 anos e durante o primeiro contato com o álbum, que foi plantada a sementinha da destruição da noção de que floquinho de neve único e especial nunca fui e nunca serei. Dark Side of the Moon é tão discão que até com os infames millennials ele dialoga.

É claro que sendo uma peça artística, o álbum abre margem para múltiplas interpretações, sejam elas acadêmicas e pedantes, ou super particulares em bloguinhos nesta internet sem lei em que insistimos em viver. Há quem diga que os versos finais do álbum - que discorrem sobre o sol ser eclipsado pela lua e sobre não existir um lado escuro da mesma, já que tudo está na escuridão e o que existe mesmo é um lado iluminado - transmitem uma mensagem de esperança. Particularmente, discordo. Se tem uma coisa que o Pink Floyd jamais me passou foi uma noção de otimismo, de que tudo vai ficar bem. Pra mim sempre foi algo na linha de olha, tá tudo uma porcaria mesmo, não tem muito o que fazer, o que resta é aguentar aí e segurar as pontas como puder e o conforto parte da percepção de que sim, tá tudo bem ruim, mas pelo menos não estamos sozinhos no sofrimento. E se não dá pra melhorar, a gente pode pelo menos trocar uma ideia sobre as mazelas da vida. É o tal do hanging on in quiet desperation, o tal do viver pink.

E o que é que nós, jovens fracassos criados à base de promessas, temos feito para lidar com as constantes e, aparentemente, inesgotáveis derrotas da vida que não seja justamente viver pink? Moldando a nossa própria forma de lidar com tudo, o nosso segurar as pontas no desespero calado, por meio de filmes de super-heróis, maratonas Netflix, memes na comunidade sofredora twitteira e outras formas de escapismo rápido e eficiente? Vou além: que não seja se conformar em viver confortavelmente entorpecido ou se entregar completamente à loucura? Fica aí uma questão para se pensar.

Enquanto isso, Dark Side of the Moon continua tão impactante e relevante quanto na época em que foi lançado, uma década também de transição e com uma juventude pós-Woodstock bastante desiludida. Claramente, um clássico. Se esse discão não foi capaz de modificar a minha maneira de pensar sobre música, meus caros, nada mais o fará.